29.4.10

CRONICA DE VIDA - O TARRAFAL DA AV. DA REPUBLICA

Em 1984, depois de 4 anos na Comissão de Trabalhadores, e quando me apresentei no meu local de trabalho, fui transferido compulsivamente para o "Tarrafal " do departamento de estrangeiro do BTA, isto é a subsecção de estatística cambial. Sobrestimando a minha capacidade, decidiram impedir que eu subvertesse novamente a minha secção de sempre e uma das maiores do departamento. A estatística estava instalada num pequeno espaço isolado nas traseiras do último andar para que a quarentena fosse eficaz. Aí fui encontrar o Carlos porque era muito nervoso e armava grandes confusões no anterior local de trabalho; o Rui porque era um bocado duro de roer e o anterior chefe apanhou uns sustos; o Gil porque era toxicodependente e o João porque sempre tinha feito aquele trabalho sob a maior indiferença de toda a gente. O trabalho consistia no registo manual, em fichas de cartão, das cambiais proporcionadas por cada um dos clientes. Os valores estavam errados desde há muito e assim permaneciam porque as novas operações eram somadas aos saldos anteriores. Ninguém se ralava. Não havia chefia directa nem qualquer controlo e todos os interessados sabiam que aqueles dados não eram reais. O nosso trabalho valia zero. Era como subir a montanha com o barril cheio de água e, lá no alto, despeja-la no chão. Um dia resolvemos pôr o raio da estatística em ordem. Afinal nenhum de nós estava ali por ser burro ou mau trabalhador. Começámos por ir ao Apolo 70 comprar esferográficas finas porque as do banco eram demasiado grossas para os minúsculos quadrados das fichas. Depois trancámos todas as fichas e abrimos novas para todos os clientes e passámos a fornecer dois números - o saldo antigo sob reserva e o novo com garantia. Após algum tempo os saldos antigos e errados foram caindo em desuso e os colegas do crédito da sede e dos balcões habituaram-se com óbvio agrado a dispor de uma informação fiável. Apesar de nós não termos informado ninguém, é mais do que certo que os chefes do departamento depressa souberam da nossa iniciativa e da qualidade do nosso trabalho mas também nunca disseram nada e continuaram a tratar-nos o pior que lhes era possível de acordo com a nossa condição de proscritos. Anos depois, encontrei o Carlos já reformado, com óptimo aspecto e como sempre muito bem vestido de fato e gravata. O Rui conseguiu realizar o seu grande objectivo e foi trabalhar para os computadores, à noite. O Gil morreu de overdose e foi uma das melhores pessoas que eu conheci. O João reformou-se e, no mesmo dia, deixou o banco, a família, a casa e a cidade. Tenho saudades de todos.