10.5.10

CRONICAS DE VIDA - O LAGAR DE AZEITE

Aprendi pouco na Escola Ind. e Comercial de Portalegre. Culpa minha por ser cabeça-no-ar e culpa dos professores que pouco ensinavam e tinham a lata de me dar notas altas. Apesar disso, logo que acabei o curso comercial, fui recrutado por um comerciante de Tolosa a quem chamavam o campeão porque queria comprar tudo e meter-se em todos os negócios. Negociava em lenhas, carvões e cortiça Depois também azeite, com muito mau resultado. Queria sempre receber antecipadamente e assim ficava nas mãos dos compradores/credores. Achava sempre que o próximo negócio ia resolver tudo. A contratação de um guarda-livros, como chamava a um garoto de 15 anos que não sabia nada de nada, foi considerada uma prova mais do desenvolvimento dos negócios. No dia da minha chegada, que por acaso não foi em Tolosa mas em Arez onde o campeão tinha comprado um velho lagar de azeite, fui imediatamente apresentado como gerente. Muito devem ter rido o mestre e os operários...

9.5.10

CRÓNICA DE VIDA - A RUA DO CASTELO

( aplicar a nota previa do post anterior ) Cresci, literalmente, na Rua do Castelo, Portalegre. A jogar à bola - uma baliza no portão do castelo, outra no portão da loja, isto é, em lados opostos da rua mas nada frontais, o que tornava o futebol mais difícil , em L. O meu pai, senhor António para toda a gente, era um profissional polivalente e flexível (! ) Quando aprendeu a andar, nos campos de Alegrete, começou a guardar porcos. Mais crescido, tornou-se condutor de carroças. Depois de um acidente, foi para a cidade e, trabalhando para o mesmo patrão, passou a guarda do castelo em ruínas, tratador do cavalo e das galinhas do feitor, guarda e distribuidor das "comedias" isto é parte dos salários pagos em espécie - toucinho, azeite, cereais, lenha... Era ainda jardineiro no palácio e lacaio para todo o serviço quando os marqueses estavam na cidade. Não tinha jeito para nada mas fazia tudo, e a todos obedecia de boa vontade - ao marquês e à marquesa, ao feitor e às criadas. E à minha mãe, claro. Só no uso do chapéu resistia à mulher. Gostava e pronto. Mesmo que na cidade mais ninguém usasse. Agora também eu uso. Porque gosto e como lembrança dele. O meu pai gostava de me ver jogar à bola, mesmo quando sujávamos as paredes que ele tinha acabado de caiar. E avisava quando vinha a polícia. Punha alcunhas significativas. Cá em casa tínhamos a raposinha e a cotovia. Eu, na época da rua do castelo, era o ouriço cacheiro. Acho que ainda sou - cheio de espinhos.

8.5.10

CRÓNICAS DE VIDA - A APANHA DA AZEITONA

(este post é para uma nova secção e só deve interessar a 2 ou 3 pessoas. Aos outros leitores, que também só devem ser outros 2 ou 3, sugiro melhores leituras como o anónimo sec XXI , o tempodascerejas, etc.) Pelos meus 7 ou 8 anos fui, com toda a família, apanhar azeitona para a fazenda do meu avô materno - Bartolomeu Ferro. Lembro-me dele como um velhote pequenino, austero e duro. Alugou um terreno inóspito e duro como ele. Os meus tios, todos trolhas e pedreiros, construíram uma casa, partiram pedra até encontrar um fio de água que levaram até à parte baixa do terreno, aí construíram um grande tanque para regar a horta que semearam. O meu avô também fez plantar oliveiras, árvores de fruto e erguer capoeira e pocilga. Tudo com a maior parte dos salários dos meus 5 tios mais o trabalho de fim de semana de toda a família ( mais 2 raparigas). Quando todos casaram, a mão-de-obra gratuita duplicou. Com todo este suor se construiu uma boa fazenda que depois reverteu totalmente para o dono do terreno. Eu gostava de ir para lá. Ao lado da casa havia uma eira, e eu fartava-me de chutar a bola contra a parede da casa. Também adorava comer pequenos morangos silvestres que descobria debaixo das folhas verdes nos regos da água, perto do tanque. E figos pingo de mel de uma pequena figueira isolada. Lembro-me disto porque não tinha tais mimos em casa. Sem nunca passar fome, não passava do mais básico e mais barato. Por isso, no dia da apanha da azeitona - eu enchi uma tigela de barro - também comecei a salivar quando, à merenda, o meu avô se pôs a assar um belo chouriço no espeto e ia recolhendo o respectivo pingo num grande pão alentejano. O velho Bartolomeu deve ter visto os meus olhos gulosos e perguntou-me : rapaz, encheste a tua tigela de azeitona, agora queres pão com molho ou com chouriço? Lembro-me perfeitamente da minha resposta: quero pão com molho e com chouriço.

5.5.10

AMIGOS - VACAS LETRADAS

Cristóvão R. é um bom amigo e um excelente presidente associativo. Culto e grande leitor, é dono de uma respeitável biblioteca e gosta de emprestar livros porque acha que eles foram feitos para ser lidos - quanto mais, melhor. Agora é fácil guardar e emprestar livros, mas nem sempre foi assim. Os jovens devem achar estranho, mas, antes de 25 de Abril de 1974, havia muitos livros proibidos, edições inteiras eram apreendidas pela pide, e por arrasto iam muitos outros livros sem interesse político, apenas para castigar e prejudicar. Os livreiros escondiam o que podiam debaixo do balcão para os clientes certos. Nas casas particulares, as rusgas da pide também se dirigiam aos livros que serviam para incriminar os proprietários. Era o tempo em que os livros do Karl Marx apareciam sob o nome de Carlos Marques e os de Lenine como V. Ilitch. Tudo isto para explicar porque era importante e necessário esconder os livros proibidos para depois os por a circular. Ora a família do Cristóvão R. explorava uma quinta no local onde hoje estão as Torres de Lisboa, à Estrada da Luz, e ele aproveitou a vacaria e a respectiva palha para esconder as edições perigosas de um conhecido e já falecido livreiro de Lisboa. Por isso ele hoje diz que até as vacas tiveram oportunidade de ler os melhores livros da época.

3.5.10

AMIGOS - AS MALAS DA ESCOLA

Conheci mal o o Armando C. , mas lembro-me que me recebia sempre como um amigo quando acontecia passar pela dependência da Gomes Freire. Soube agora que, não dando nunca nas vistas (como convinha) o Armando era um dos homens que fazia circular os jornais e manifestos clandestinos. Como a tantos outros, a pide bateu-lhe à porta pela manhã. Valeu a coragem e sangue frio da esposa - pediu aos esbirros que a deixassem mandar os miúdos para a escola e rapidamente encheu-lhes as malas (ainda não se usavam mochilas) com todos os papeis clandestinos que conseguiu reunir. Dessa vez a pide falhou. E a escola teve material original.

2.5.10

AMIGOS - O HOMEM DO CASAL VENTOSO

Vivia no Casal Ventoso e dava-se muito bem no bairro. Aceitava as pessoas como elas eram e tinha imensos amigos. Dirigente do clube Andorinha, estava sempre a organizar coisas que ou começavam ou acabavam num petisco e num copo. Muitas vezes o programa até era apenas esse. Mostrou-me o bairro e explicou-me que os drogados e os dealers faziam parte da paisagem e alguns, sim senhor, eram de lá, como havia ratoneiros e demais banditagem mas a maioria esmagadora dos habitantes eram bate-chapas e carpinteiros, criadas e peixeiras - um bairro operário muito modesto e cheio de carências além da má fama. Ajudou-me muito quando estivemos juntos nas lides sindicais. Quando me via muito chateado ia ter comigo e, à saída, bebíamos um copo e comíamos um pastel de bacalhau ali pela baixa. Adorava ver as montras de ferramentas e explicava-me o jeitão que aquelas coisas davam para isto e para aquilo. No trabalho era competente e modestíssimo como em tudo o mais. E tinha uma particularidade. Depois do almoço adormecia 5 minutos frente ao computador. Mas com o dedo na tecla certa. Se o chefe se aproximava para o confrontar, não tinha sorte nenhuma - ele pressentia a aproximação, premia a tecla e o trabalho avançava imediatamente e certíssimo. Até sempre, amigo e camarada António Almeida.

29.4.10

CRONICA DE VIDA - O TARRAFAL DA AV. DA REPUBLICA

Em 1984, depois de 4 anos na Comissão de Trabalhadores, e quando me apresentei no meu local de trabalho, fui transferido compulsivamente para o "Tarrafal " do departamento de estrangeiro do BTA, isto é a subsecção de estatística cambial. Sobrestimando a minha capacidade, decidiram impedir que eu subvertesse novamente a minha secção de sempre e uma das maiores do departamento. A estatística estava instalada num pequeno espaço isolado nas traseiras do último andar para que a quarentena fosse eficaz. Aí fui encontrar o Carlos porque era muito nervoso e armava grandes confusões no anterior local de trabalho; o Rui porque era um bocado duro de roer e o anterior chefe apanhou uns sustos; o Gil porque era toxicodependente e o João porque sempre tinha feito aquele trabalho sob a maior indiferença de toda a gente. O trabalho consistia no registo manual, em fichas de cartão, das cambiais proporcionadas por cada um dos clientes. Os valores estavam errados desde há muito e assim permaneciam porque as novas operações eram somadas aos saldos anteriores. Ninguém se ralava. Não havia chefia directa nem qualquer controlo e todos os interessados sabiam que aqueles dados não eram reais. O nosso trabalho valia zero. Era como subir a montanha com o barril cheio de água e, lá no alto, despeja-la no chão. Um dia resolvemos pôr o raio da estatística em ordem. Afinal nenhum de nós estava ali por ser burro ou mau trabalhador. Começámos por ir ao Apolo 70 comprar esferográficas finas porque as do banco eram demasiado grossas para os minúsculos quadrados das fichas. Depois trancámos todas as fichas e abrimos novas para todos os clientes e passámos a fornecer dois números - o saldo antigo sob reserva e o novo com garantia. Após algum tempo os saldos antigos e errados foram caindo em desuso e os colegas do crédito da sede e dos balcões habituaram-se com óbvio agrado a dispor de uma informação fiável. Apesar de nós não termos informado ninguém, é mais do que certo que os chefes do departamento depressa souberam da nossa iniciativa e da qualidade do nosso trabalho mas também nunca disseram nada e continuaram a tratar-nos o pior que lhes era possível de acordo com a nossa condição de proscritos. Anos depois, encontrei o Carlos já reformado, com óptimo aspecto e como sempre muito bem vestido de fato e gravata. O Rui conseguiu realizar o seu grande objectivo e foi trabalhar para os computadores, à noite. O Gil morreu de overdose e foi uma das melhores pessoas que eu conheci. O João reformou-se e, no mesmo dia, deixou o banco, a família, a casa e a cidade. Tenho saudades de todos.

4.3.10

BANQUEIROS E BANCÁRIOS

Hoje é nítida uma nova camada social em Portugal. Não detêm os meios de produção e no fundo são assalariados mas têm tudo a ver com a classe dominante capitalista e nada com os trabalhadores.

Há poucos dias dizia Artur Santos Silva, presidente do BPI, que tem menos do que 0,1% das acções do banco. Portanto, tecnicamente, é um bancário e não um banqueiro, como outros da praça.

Acontece é que se trata de todo um grupo social composto por administradores e directores de primeira linha que, na banca e nas outras grandes empresas, se identificam e servem totalmente os accionistas dos quais dependem. Apesar de o não serem, têm uma actuação de patrões e assumem o poder, muitas vezes com maior arrogância do que os capitalistas que servem.

E fazem-se pagar principescamente. Acima do que se pratica na Europa realmente desenvolvida.

Isto compreende-se melhor se formos às origens.

Em Portugal começou (com esta dimensão) quando das desnacionalizações da banca. Alguns dos últimos gestores dos bancos nacionalizados, incluindo presidentes, prepararam a entrega dos mesmos aos privados ( por tuta e meia) e continuaram depois a geri-los para os novos patrões.

Nestas condições, as equipas de gestão começaram a ganhar o que queriam.

Depois o movimento alastrou às grandes empresas públicas e privadas e hoje mantém-se porque os gestores, intimamente ligados aos partidos do poder, continuam a proporcionar grandes lucros e mais-valias aos patrões accionistas.

Estas remunerações não têm nada a ver com o mérito que alguns gestores, e só alguns, possam ter. Estão muito acima disso. Não têm correspondência com o trabalho prestado nem com os resultados alcançados. São uma fraude.

A solução não é difícil e é fornecida pela progressividade dos impostos - acima de um montante razoável, imposto de 100% . Acabava logo o regabofe.

É óbvio que a tributação de 50%, só para prémios e só para bancos, não passa de demagogia para iludir o pagode.

30.1.10

CRÓNICAS DE VIDA - BISAVÔ

Hoje apresento o bisavô Joaquim a duas meninas, leitoras deste blogue. Eram assim os rurais alentejanos há cem anos. Julgo que, neste caso. se tratava de um guardador de gado. A foto está assinada: Silva Nogueira - Rua D. Pedro V, 18-20 Lisboa e é mais do que certo que o artista se deslocava ao Alentejo e possivelmente montava atelier nas feiras. Por mim, sinto-me muito perto e muito parecido com o meu avô. E aquele cajado dava-me um jeitão, tantas vezes...

12.1.10

CRÓNICAS DE GUERRA - M/S VERA CRUZ

Faz hoje 44 anos que este mocinho quase imberbe e totalmente inconsciente embarcou no paquete Vera Cruz com destino a Moçambique e à guerra colonial. Levava a cabeça cheia de romances mal lidos e mesmo com o Hemingway e o Steinbeck não tinha aprendido nada. Em suma, julgava que a guerra era romance e aventura e ele o protagonista...