31.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( V )

a última baixa

No Chá Madal sofremos a nossa última baixa. Estúpida como todas as mortes aos vinte anos. Ainda mais estúpida por pertencer àquela guerra estúpida.
E também por ter ficado relacionada com um momento bom, como era o futebol.

O cabo P. estava equipado a preceito, já não sei se "à Porto" ou "à Benfica".
Ficava-lhe bem. Tinha boa planta e era um bom defesa-central.
Ao contrário da maioria que jogava mal e equipava como calhava.

Lembrou-se que tinha que tomar uma injecção de rotina, foi ao posto médico antes de rumar ao futebol.

Foi a última coisa que fez. Talvez reacção alérgica.

Enterrámo-lo no dia seguinte, num cemitério qualquer, algures na Zambézia.

Hoje lembro-me dos filmes norte-americanos, com toda aquela pompa, o dobrar da bandeira, as continências, o toque de silêncio.

Nós, tropa sempre mal-amanhada, também amarrotados e sujos pelo pó da picada, milicianos (militares improvisados) em tudo, até no ritual da morte, lá nos perfilámos e demos uns tiros para o ar. Sem pompa, mas com respeito. E raiva daquilo tudo.

Foi uma morte entre 9.000. E mais 30.000 mutilados.
A responsabilidade histórica, por enquanto, está solteira.
Branquear a história, por omissão ou deturpação, é grave. E perigoso.

29.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( IV )


Golo de Mr. M.

O campo de futebol era uma pequena colina aplanada, rodeada de chá por todos os lados. Muito perto da casa de Mr. M.

Mr. M. era um exímio jogador. Apesar de andar pelos 50, era muito rápido, contornava-nos em grande velocidade e seguia, com a bola, na direcção da baliza.

Jogava com grande alegria. E vivia como jogava.

Tinha vindo do Ceilão e era um excelente técnico de chá. Graças a ele as folhas verdes secavam e maceravam com precisão.

Em casa, Mr M. tinha uma regra sagrada - as garrafas de whisky, uma vez abertas, não podiam transitar para o dia seguinte. Quando não tinha visitas era apenas uma por dia.

Mr M. era um inglês tranquilo e sorridente. No final dos anos sessenta, sabia perfeitamente que aquela vida e aquele trabalho tinham um prazo curto. Há muito que a sua pátria tinha descolonizado e, ali em Moçambique, só alguns portugueses, por ignorância, pensavam que seria diferente.

Mr. M. tinha grande vantagem sobre todos nós. Era de um país onde não havia censura nem polícia política. Nós não sabíamos nada. Tínhamos medo em vez de termos liberdade.

Por isso, Mr. M. vivia e saboreava cada dia.

Os lotes de chá saíam exactamente como deviam, as garrafas eram bebidas até ao fim e, no campo, aplicava-nos a sua finta fantástica.

Good Bye, Mr. M.

28.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( III )


As aldeias

A estadia no Chá Madal não era propriamente de férias.
Regularmente, aí uma vez por mês, tínhamos que sair em patrulha, ou acção psico-social, ou qualquer outro dos nomes que a tropa gosta de inventar.
Duas ou três viaturas grandes, carregadas de gente armada e de tudo o que fosse comestível e bebível e coubesse na verba, per capita, do regulamento.
Estávamos prontos para mais uma semana pouco agradável das nossas vidas.
Comer enlatados mal cozinhados e dormir no chão ou , (privilégio nada desprezível) numa maca, não era nenhuma festa.
Visitar aldeias arruinadas, isoladas no mato, com todas as carências do mundo, os poucos habitantes cheios de medo, ainda menos.
Ficariam, talvez, a poucas dezenas de quilómetros das estradas principais, mas pareciam centenas por aquelas picadas esburacadas e abandonadas.
Sempre de súbito, pois só se via mesmo ao pé, o mato abria-se e surgia uma clareira com 3 ou 4 palhotas. O guia dizia que era ali a aldeia tal.
Não se via ninguém. As mulheres e as galinhas, já sabíamos, desapareciam no mato logo que ouviam os motores. Os homens estavam muito longe, nas plantações ou na Frelimo.
Passados alguns minutos lá aparecia, sempre muito queixoso, um ancião.
Diálogo estranho ou talvez não. Com a sábia ajuda do guia-intérprete, nunca se percebia nada. Palavras soltas para lá e para cá, significado zero. Estava bem assim.
Só uma coisa o nosso anfitrião deixava muito claro - não era régulo de certeza absoluta - só estava por ali por ser velho. É que, em tempo não muito remoto, os régulos tinham pago pesadas facturas. Com a vida. E, muitas vezes, com os régulos, muitos mais.
O conflito clássico era a aldeia não cumprir a quota de trabalhadores para o "contrato" (trabalho forçado para as plantações). Represálias. Revolta violenta. Mais represálias, agora por unidades especiais ( policia, exército, pide).
Resultado - aldeias quase desertas, machambas abandonadas, fome e medo para muitos anos.
Agora a tropa manda aplicar acção psico-social. Pois.

Apostilha: Por vezes as galinhas apareciam - uma ou duas, já depenadas e bem longe da aldeia. Os espertos (sem sombra de ironia) camponeses/soldados tinham-nas descoberto no mato e explicavam sempre um negócio muito confuso, por troca directa, com alguém que também só eles encontravam. É verdade que o entendimento era muito mais fácil porque não tinham intérprete. De qualquer maneira, os animais só apareciam quando já não era possível averiguar a lisura do negócio, caso a consciência do comandante fosse mais forte do que a vontade de comer uma coxa ou um peito.

27.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( II )


OS APANHADORES DE CHÁ

Em grupos organizados, caminham através dos estreitos carreiros entres as plantas, com as duas mãos colhem os rebentos e atiram-nos para dentro dos grandes cestos que transportam às costas - são os apanhadores de chá.
Não falam, nem riem. Mecanicamente executam o trabalho e ninguém sabe o que pensam.
A meio do dia chega a camioneta. Capatazes e ajudantes cruzam três paus ao alto, penduram a balança, pesam os cestos e registam o resultado. Os apanhadores não olham. Não vale a pena. Sabem que não podem discutir o peso, nem o pagamento. Nem qualquer outra coisa. Sentam-se no chão e comem a ração que lhes é distribuída - um prato de mandioca e algum peixe seco. Toda a gente sabe que preto não gosta de galinha, como as senhoras brancas explicam.

Vieram de aldeias distantes. Deixaram as famílias e as machambas (hortas familiares). Foram recrutados à força pelos administradores portugueses, com a ajuda dos sipaios moçambicanos devidamente armados. Era a lei.

Tudo começou com a atribuição de terras a colonos brancos por longos períodos - "os prazos" que às vezes se mediam em gerações.
Pelo seu lado, os povos indígenas tinham que pagar impostos - "de palhota" e individual. Dinheiro não tinham, géneros só para comer, inventou-se o pagamento em trabalho - sobretudo arranjavam caminhos o que não era mau e beneficiava a comunidade.
Depois, os colonos ou "prazeiros" começaram a entrar em dificuldades e venderam os "prazos". Assim chegaram as empresas interessadas nos produtos tropicais.
Eram constituídas por capitalistas portugueses mas sobretudo estrangeiros, estes já ligados às grandes empresas dos seus países.
De início os trabalhadores eram recrutados para trabalhar para o estado e, em seguida, desviados para as plantações (além do chá também coqueiros, sisal, algodão e cana sacarina)
Depois, a lei foi "aperfeiçoada" - nestas e noutras matérias distinguiram-se os governadores Augusto de Castilho e António Enes que constam dos livros de história - e os indígenas ficaram obrigados a trabalhar para as empresas.
Chamavam-se, ironicamente, "os contratos" mas não estabeleciam nenhum direito para os trabalhadores.
As empresas já tinham a terra quase de graça. A mão-de-obra, agora, também.

25.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( I )


UMA PISCINA NO ALTO DA MONTANHA

Estava-se bem no Chá Madal.
O clima era agradável e a velha casa colonial que nos destinaram tinha um alpendre, à sombra de uma grande mangueira, e com uma bela vista sobre a plantação.
Estendendo-se até perder de vista, as colinas estavam totalmente cobertas pelos arbustos verdes do chá. Parecia um grande mar tranquilo.
Depois de um ano com alguma guerra e muitas privações lá pelo norte, a plantação de chá, nos montes da Zambézia, era um refrigério.
Conversava-se e desconversava-se muito naquela varanda, muitas bocas a propósito ou a despropósito mas a calma era sólida e saborosa como as mangas que iam caindo lá do alto.
No íntimo, recordavam-se alguns maus bocados do ano anterior, agora com uma sensação de agradável alivio.
Mesmo após vários meses, ainda se sentia a descompressão. As tensões que havíamos acumulado, os medos que tínhamos escondido de nós próprios iam-se desvanecendo. Sabiamente, a nossa memória libertava-nos, pouco a pouco, dos nossos fantasmas.

Estava-se bem no Chá Madal.

E quando fazia mais calor, subia-se um pouco a montanha e encontrava-se... a piscina.
Lá estava ela, no cimo do Monte Mabu.
Não era grande, talvez de tamanho médio, mas sempre limpa , fresca e rodeada de relva.
Pertencia a uma grande casa envidraçada com mobília inglesa.
Era a residência do administrador e impressionava porque lá bem no alto, já perto do cume da montanha, isolada de tudo, não se esperava encontrar uma vivenda daquelas, mais própria de um bairro rico de qualquer cidade.
Mas ali, no alto da montanha, a casa e a piscina eram um símbolo de poder.
Do poder dos donos daquela e doutras plantações, a "Societé du Madal" - assim mesmo em francês e tudo porque a sede era no Mónaco, e além do príncipe respectivo, tinha accionistas de vários países europeus.