28.8.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( III )


As aldeias

A estadia no Chá Madal não era propriamente de férias.
Regularmente, aí uma vez por mês, tínhamos que sair em patrulha, ou acção psico-social, ou qualquer outro dos nomes que a tropa gosta de inventar.
Duas ou três viaturas grandes, carregadas de gente armada e de tudo o que fosse comestível e bebível e coubesse na verba, per capita, do regulamento.
Estávamos prontos para mais uma semana pouco agradável das nossas vidas.
Comer enlatados mal cozinhados e dormir no chão ou , (privilégio nada desprezível) numa maca, não era nenhuma festa.
Visitar aldeias arruinadas, isoladas no mato, com todas as carências do mundo, os poucos habitantes cheios de medo, ainda menos.
Ficariam, talvez, a poucas dezenas de quilómetros das estradas principais, mas pareciam centenas por aquelas picadas esburacadas e abandonadas.
Sempre de súbito, pois só se via mesmo ao pé, o mato abria-se e surgia uma clareira com 3 ou 4 palhotas. O guia dizia que era ali a aldeia tal.
Não se via ninguém. As mulheres e as galinhas, já sabíamos, desapareciam no mato logo que ouviam os motores. Os homens estavam muito longe, nas plantações ou na Frelimo.
Passados alguns minutos lá aparecia, sempre muito queixoso, um ancião.
Diálogo estranho ou talvez não. Com a sábia ajuda do guia-intérprete, nunca se percebia nada. Palavras soltas para lá e para cá, significado zero. Estava bem assim.
Só uma coisa o nosso anfitrião deixava muito claro - não era régulo de certeza absoluta - só estava por ali por ser velho. É que, em tempo não muito remoto, os régulos tinham pago pesadas facturas. Com a vida. E, muitas vezes, com os régulos, muitos mais.
O conflito clássico era a aldeia não cumprir a quota de trabalhadores para o "contrato" (trabalho forçado para as plantações). Represálias. Revolta violenta. Mais represálias, agora por unidades especiais ( policia, exército, pide).
Resultado - aldeias quase desertas, machambas abandonadas, fome e medo para muitos anos.
Agora a tropa manda aplicar acção psico-social. Pois.

Apostilha: Por vezes as galinhas apareciam - uma ou duas, já depenadas e bem longe da aldeia. Os espertos (sem sombra de ironia) camponeses/soldados tinham-nas descoberto no mato e explicavam sempre um negócio muito confuso, por troca directa, com alguém que também só eles encontravam. É verdade que o entendimento era muito mais fácil porque não tinham intérprete. De qualquer maneira, os animais só apareciam quando já não era possível averiguar a lisura do negócio, caso a consciência do comandante fosse mais forte do que a vontade de comer uma coxa ou um peito.

Um comentário:

Margarida Bonvalot disse...

Muito boas, estas crónicas. Fico à espera de mais. E, como disse um tal Red Dragon, em comentário à primeira, mereciam um destaque especial.

Red Eagle