4.9.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( x )

VIAJAR


Do Chá Madal até Nampula era uma viagem e tanto.

De machimbombo (autocarro ) para norte. Centenas de quilómetros de picadas avermelhadas, muito capim e algumas árvores de grande porte. Reconheciam-se os embondeiros descarnados e as mangueiras sempre com frutos. Os passageiros eram quase só mulheres e crianças africanas. Com as suas capulanas coloridas e as suas trouxas como bagagem, viajavam essencialmente em busca de cuidados de saúde.

Depois apanhava-se o comboio que vinha de oeste, do Malawi e do Lago Niassa e viajava-se para Nampula. A linha terminava em Nacala - grande porto natural de águas profundas na espantosa baía de Pemba. No comboio, os passageiros eram diferentes do machimbombo . Africanos, muitos soldados portugueses e rodesianos brancos muito mal disfarçados de civis. A Rodésia era então uma independência branca, dirigida por Ian Smith, muito armada e que defendia ferozmente as suas saídas para o mar por caminho de ferro - para Nacala e principalmente para a Beira.

Quelimane era mais perto e mais agradável para uns dias de descanso. Era a capital e o porto da Zambézia. Nas cervejarias,o marisco era acompanhamento gratuito da cerveja e pouco mais era preciso para a tropa ser feliz.

Em Nampula como em Quelimane, mais a sul na Beira, ou ainda mais na então Lourenço Marques, havia uma constante. Eram cidades duplas. Dum lado a cidade europeia, de cimento, com bons estabelecimentos, cinema e o sempre presente clube ferroviário com a sua piscina. Do outro lado a cidade negra - os musseques construídos com capim e chapa de zinco.

A dicotomia era demasiado violenta. Não ia acabar bem.

CRÓNICAS DO CHÁ ( IX )


OS CANTINEIROS

O Sr. A. era o dono da cantina que frequentávamos. Ao lado da pequena cervejaria tinha uma loja, com balcão comprido, onde vendia de tudo - mercearias, tecidos, ferramentas, uma infinidade de coisas. Estava bem situada, esta cantina, junto ao Chá Madal e no caminho para outra plantação menor. Muitos outros cantineiros não tinham tal sorte e estavam estabelecidos em simples cruzamentos de picadas junto a aldeias semi-abandonadas.

O Sr. A. gostava de servir a tropa - éramos bons clientes e as fardas verdes e camufladas transmitiam segurança e tranquilidade.

Gostava de nos contar o seu trabalho e as suas aventuras. Tinha um camião e, apenas com um ajudante, percorria várias centenas de quilómetros, até à cidade, para se abastecer. As picadas, que nós também conhecíamos, abundavam em buracos e pó. Na época das chuvas surgiam rios em todo o lado que era forçoso atravessar. Já tinha ficado atolado durante dias até chegar socorro ou a água baixar. Também havia pontes. O tabuleiro era de troncos amarrados que, volta e meia se soltavam debaixo das rodas das viaturas.
Quando havia aldeias, o Sr. A. e o ajudante iam à procura de excedentes, comprando um saco de milho aqui, uns cachos de bananas acolá.

Tinham uma fama péssima, os cantineiros. Merecida em alguns casos. Noutros talvez não. Mas os aldeãos atribuíam-lhes todas as culpas pelas suas dificuldades - o que vendiam era sempre barato e o que compravam, sempre caro. Os problemas dos comerciantes não lhes diziam respeito.

Não parece que fosse negócio para fazer milionários. Entrava um(a) cliente e pedia um escudo de açúcar. Saía com a compra num pequeno cartuxo cónico de papel pardo.


Apostilha: Em 2009, o governo de Moçambique está tentar recuperar 3.000 cantinas, consideradas essenciais para melhorar a vida nos campos.

3.9.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( VIII )


A BARRAGEM

O Chá Madal tinha uma barragem com uma pequena hidro-eléctrica que servia a plantação e a fábrica.

Meia dúzia de soldados e o inevitável furriel montavam guarda permanente. Que serviria de pouco se houvesse acção hostil. Enfiados num buraco sem visibilidade, sem protecção, mal armados, seríamos um alvo fácil.

Vivia-se mal, numa pequena casa sem condições, bem junto ao sopé da enorme encosta, quase vertical, por onde desciam os canos da água.
Já tinha sido uma bonita cascata.

Também se comia mal é claro. Valia a esperteza dos camponeses-soldados que sempre descobriam alguma novidade.

Com uns tiros de espingarda nos pequenos pegos do regato "pescavam-se" uns peixitos miúdos para uma fritada.

Com paciência e pontaria "caçavam-se" uns pássaros para um arroz.

E não se fazia mais nada.

A não ser, sonhar com os churrascos de porco ou de galinha regados exclusivamente com whisky, oferta da casa ( Madal).

Guardava-se a água e sonhava-se com o whisky. Passava mais uma semana.

2.9.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( VII )


UM JAVALI NA CAMA

Tínhamos estado na cantina à saída do Chá Madal.

A beber cervejas Laurentina e a comer ovos cozidos. Muitas e muitos.

No regresso, o jipe teve um encontro, pouco amigável, com um javali.

Protegido pela forte couraça, o bicho ficou atordoado mas vivo.

Dava grandes saltos e corria pelo chá.

Foi uma pequena tourada nocturna.

Terminada com um tiro de pistola bem junto à cabeça.

Prenda para o nosso furriel vagomestre, que tratava dos abastecimentos e do rancho.

Por acaso, outro furriel respondia pelas comunicações, outro pelas viaturas, outro ainda pela saúde (parece que tínhamos direito a um médico mas eles ficaram todos juntos e confortáveis na sede do batalhão). Os outros furriéis, uns 8, asseguravam o trabalho operacional - patrulhas, destacamentos, escoltas e o mais que aparecesse. No Chá zambeziano e arredores, como anteriormente a norte, no planalto de Mueda.

Só havia um oficial do quadro e dois milicianos o que dava à justa para as relações públicas.

Os sargentos do quadro, com uma excepção, descobriram, logo à chegada, a vocação administrativa e ingressaram na secretaria.

Se calhar foi a guerra dos furriéis milicianos. Adiante.

Chegados a casa, pegámos cada um em sua pata do javali e, no silêncio da noite, cuidadosamente, introduzimos o bicho na cama do vagomestre.

O berro ressoa, até hoje, nas colinas do chá.

1.9.09

CRÓNICAS DO CHÁ ( VI )

( Cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro)


PAGAMENTO SAFURI

Pagamento Safuri era um mainato (empregado doméstico) muito sorridente e bem disposto.

Baixote, olho vivo, dentes irregulares muito brancos, sempre a rir.

Limpava a casa e tratava da roupa de dois ou três de nós. Ganhava mais do que os apanhadores de chá, trabalhava menos e era bem tratado.

Simples e humilde, alinhava nas piadas e brincadeiras mas mantinha uma boa reserva.

Sim tinha mulher e filhos, mas sem pormenores.

Sim morava perto, mas não se percebia bem onde.

Qualquer pergunta vagamente relacionada com a vida na plantação ou em Moçambique era descartada com um sorriso e um encolher de ombros.

Isto era regra e não excepção.

Todos os moçambicanos negros reservavam as suas opiniões e as suas palavras.

A região já tinha sofrido a sua dose de violência e a guerrilha tanto podia andar longe como podia estar já bem perto. O mato torna tudo invisível a poucos metros.

Pagamento Safuri ria à gargalhada com a graçola da escala social moçambicana e confirmava que era verdadeira.

" Primeiro Branco, depois preto, depois cão e depois monhé (de origem indiana) ".

Os monhés depois dos cães, era um piadão.

O preto depois do branco, não era piada.