
28.11.09
CRÓNICAS DE VIDA - SINDICALISMO NO TOTTA

25.11.09
CRÓNICAS DE VIDA - SINDICALISMO E RESISTÊNCIA

22.11.09
AMIGOS - FERNANDO HENRIQUES - MEMÓRIA

20.11.09
AMIGOS - FRANCISCO PATRÍCIO - MEMÓRIA

15.11.09
AMIGOS - MEMÓRIA DE CARLOS GRILO ( I )

14.11.09
AMIGOS - MEMÓRIA DE CARLOS GRILO ( V )

13.11.09
AMIGOS - MEMÓRIA DE CARLOS GRILO ( I V )

AMIGOS - MEMÓRIA DE CARLOS GRILO ( I I I )

12.11.09
AMIGOS - MEMÓRIA DE CARLOS GRILO ( I I )

7.11.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( X )
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( l X )

O regabofe
Em 1982, no governo da AD e com João Salgueiro Ministro da Finanças, é subscrito o acordo para "devolução" dos bens a Jorge de Brito.
Algo como 6 milhões de contos.
Como a época lhe era propícia, Brito exige que a avaliação se faça com base nas cotações da bolsa de 1974 ( ver crónica V ).
O BIP foi avaliado em 2,4 milhões de contos - quase tanto como o Sottomayor.
O Banco de Portugal, que tinha contestado o acordo para tentar salvar o capital com o qual tinha socorrido o BIP, foi obrigado a desistir.
O Banco Pinto & Sottomayor, que tinha sido obrigado a absorver o BIP, ficou com os prejuízos.
6.11.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( VIII )

A queda
Em Outubro de 1974, o Governo foi obrigado a intervir no BIP para evitar a bancarrota.
As reservas de caixa eram então de 43.000 contos quando o mínimo legal exigível era de 604.000.
Na Câmara de Compensação o BIP tinha deixado de pagar os seus cheques.
As responsabilidades de Jorge de Brito e respectivas empresas, para com o BIP, eram:
- livranças descontadas - 1,7 milhões de contos
- empréstimos em contas correntes - 2,1 milhões
- devedores por garantias e avales prestados - 1,1 milhões
- dívida não contabilizada - 850.000 contos
- dívida externa não contabilizada - 26.400.000 francos suiços.
Silva Lopes, profundo conhecedor do BIP como Governador de Banco de Portugal e Ministro das Finanças e ainda baseado em pareceres jurídicos, confirmará:
"a existência de burlas e falsificações, praticadas no âmbito das funções exercidas pelo presidente, mas também indícios de práticas criminosas na gestão do banco"
Julgado apenas por dois crimes, Brito foi condenado a 6 meses de prisão, quando já tinha cumprido 19 em preventiva.
5.11.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( VII )

Mecenas do Glorioso
O futebol tinha, fatalmente, que cobrar o seu quinhão dos negócios BIP/Jorge de Brito.
Em 1973 foi a oferta da pista de tartan.
Depois, Jorge de Brito pagou jogadores e fez empréstimos sem retorno.
O empresário de futebol, Manuel Barbosa, dirá: "sempre que não havia dinheiro para contratações no Benfica, eu telefonava-lhe e ele dizia - traz, Manel, traz."
Brito foi presidente do Benfica em 1991/93.
A gestão foi catastrófica. As vedetas saíam do clube em consequência dos salários em atraso,
Foi o único presidente destituído em Assembleia Geral. Minutos depois foi eleito presidente honorário.
4.11.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( VI )

O coleccionador
A fúria compradora de Jorge de Brito, com o dinheiro do BIP, também se fez sentir na arte.
Em pouco tempo reuniu uma enorme colecção de pintura - calcula-se que 3.000 obras.
Uma enorme colecção de Vieira da Silva e ainda Carlos Botelho, Eduardo Viana, Julio Pomar e muitos outros.
Também estrangeiros como Klee, Matisse, Braque...
Quando as coisas lhe começaram a correr mal, a colecção foi imediatamente "exportada" para a Suíça e um lote foi interceptado pela polícia espanhola pelo que ficou o registo da "operação".
Em 1983, Azeredo Perdigão queria, a todo o custo e a toda a velocidade, abrir o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.
Brito aproveita a urgência e vende-lhe 500 quadros.
E exige o pagamento em notas. Diz-se que para humilhar Perdigão. Talvez.
31.10.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( V )

A Bolsa
Desde o final dos anos 60, a Bolsa de Valores de Lisboa era palco da maior especulação. Mas em 1973/74 atingiu-se o delírio. Jorge de Brito era o campeão.
Quando o ministro das finanças, alarmado, lhe pediu explicações, Brito ter-lhe-à respondido:
"anda gente a comprar acções sem ter dinheiro e outra a vender sem ter acções".
Os títulos, em papel, demoravam muitos dias a ser entregues. E esse era só um dos truques.
No exercício de 1973, 5 empresas - Barranquinho, Crastos, Caramujeira, Albandeira e Vale de Engenho - apresentaram exactamente o mesmo lucro: 1.007.157$50. No mesmo dia tinham comprado e vendido os mesmos títulos. Comprador? - J. Brito. Vendedor? - J. Brito.
Jorge de Brito faz ganhar algum dinheiro aos trabalhadores do BIP e a muitas outras pessoas - vende-lhes acções que recompra pouco depois e volta a vender muito mais caro. Com estes movimentos faz subir as cotações e quando tal não é suficiente põe o próprio banco a comprar caro para forçar a alta.
Assim se gerava a grande euforia.
O BIP atinge cotações irreais, duplicando o valor dos grandes bancos. A última cotação de 1973, a 26 de Dezembro, foi de 17.000$00. A 23 de Novembro tinha sido de 35.000$00.
Era o grande carrossel. Com as vítimas do costume.
30.10.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( I V )

Assalto à mão armada
A partir do Augustine Reis/BIP, Jorge de Brito lança-se numa corrida desenfreada de compra de empresas. Algumas tinham valor mas outras serviam apenas para montar operações de compra e venda de acções. Dizia-se que estava a comprar Portugal.
Em alguns meses Brito detém 100% de do capital de 24 sociedades e domina mais 13 além de diversas participações minoritárias. Alguma industria, muito imobiliário.
Tudo em seu nome. Tudo pago pelo banco. Primeiro com os recursos disponíveis depois com empréstimos contraídos pela instituição. Muitos pagamentos de empresas foram efectuados contra a entrega de certificados de depósitos a prazo, obviamente falsos, pois não havia entrada de dinheiro correspondente.
Como coroa de glória, Jorge de Brito compra a Sociedade Nacional de Tipografia, proprietária do jornal " O Século"por 344.000 contos. Com recurso a um descoberto no BIP.
Brito justifica esta compra dizendo que precisa ter uma arma.
29.10.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( III )

Pêlo do mesmo cão
Augustine Reis & Cia era uma pequena casa bancária, conservadora, prestigiada e vocacionada para a gestão de fortunas.
O choque com o empregado Jorge de Brito era inevitável.
Os tempos corriam de feição para Brito e não para a família Reis.
Em 31 de Dezembro de 1970, por 335.700 contos, Jorge de Brito compra a Augustine Reis,
que tinha então um capital social de 55.000 contos.
Em 14 de Março de 1972, apesar da oposição de muitos responsáveis, a casa bancária passa a banco - o Banco Intercontinental Português, com um capital de 370.000 contos.
Só era difícil convencer os donos dos bancos a venderem. O pagamento era muito fácil e utilizava-se sempre a receita "pêlo do mesmo cão" - paga-se depois de estar dentro do banco, com o dinheiro que lá se encontra.
28.10.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( ll )

grandes negócios
Podia ter acrescentado que, aos balcões do BES e depois da Augustine Reis, tinha acesso a informação privilegiada que usava constantemente em proveito próprio.
Com requintada habilidade, conseguia participar nos grandes negócios de acções, a título pessoal, como intermediário, como comprador e como vendedor.
Foi assim com a Companhia de Cervejas Estrela - ao negociar as acções da família Beirão da Veiga conseguiu, como contrapartida, comprar a velha fábrica do Campo Pequeno. Além disso, cobrou a bela comissão de 8.000 contos.
Foi assim com a compra do Banco Lisboa & Açores pelo Totta Aliança. Actuou como intermediário dos Melos, como comprador da Soc. Comercial Abel Pereira da Fonseca (grande accionista do Lisboa & Açores além de outros negócios) e como vendedor aos mesmos Melos que lhe tinham emprestado o dinheiro. Desde vez acumulou ganhos de 200.000 contos. Para desespero dos Melos que nunca pensaram que o testa-de-ferro lhes saísse tão caro.
27.10.09
CRÓNICA DE UM BANQUEIRO ( l )

Os papéis da velha
Filho do colega da ourivesaria, Jorginho era conhecido e estimado pelos comerciantes da baixa de Lisboa. Ainda hoje os mais velhos o recordam e gostam de contar a história do início da sua carreira de banqueiro.
Jovem e promissor, Jorginho ingressou cedo na banca e acertou logo no alvo - o balcão de títulos do Banco Espírito Santo.
A primeira oportunidade surgiu quando a viúva de um capitalista, velha conhecida dos comerciantes da baixa, chegou ao banco com um grande pacote de títulos antigos, presumivelmente desvalorizados.
Que sim e pois, devia estar quase tudo caducado, o jovem bancário pediu alguns dias à cliente para analisar os títulos e tentar salvar o que fosse possível.
No prazo combinado tudo estava tratado, a velha senhora recebeu, agradecida, um cheque modesto, e o futuro banqueiro entrou no clube dos bem-aventurados.
Durante muito tempo, quando passava na baixa, Jorge de Brito ouvia da porta das lojas:
Oh Jorginho olha a velha! Oh Jorginho olha os papéis da velha!
4.9.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( x )

Do Chá Madal até Nampula era uma viagem e tanto.
De machimbombo (autocarro ) para norte. Centenas de quilómetros de picadas avermelhadas, muito capim e algumas árvores de grande porte. Reconheciam-se os embondeiros descarnados e as mangueiras sempre com frutos. Os passageiros eram quase só mulheres e crianças africanas. Com as suas capulanas coloridas e as suas trouxas como bagagem, viajavam essencialmente em busca de cuidados de saúde.
Depois apanhava-se o comboio que vinha de oeste, do Malawi e do Lago Niassa e viajava-se para Nampula. A linha terminava em Nacala - grande porto natural de águas profundas na espantosa baía de Pemba. No comboio, os passageiros eram diferentes do machimbombo . Africanos, muitos soldados portugueses e rodesianos brancos muito mal disfarçados de civis. A Rodésia era então uma independência branca, dirigida por Ian Smith, muito armada e que defendia ferozmente as suas saídas para o mar por caminho de ferro - para Nacala e principalmente para a Beira.
Quelimane era mais perto e mais agradável para uns dias de descanso. Era a capital e o porto da Zambézia. Nas cervejarias,o marisco era acompanhamento gratuito da cerveja e pouco mais era preciso para a tropa ser feliz.
Em Nampula como em Quelimane, mais a sul na Beira, ou ainda mais na então Lourenço Marques, havia uma constante. Eram cidades duplas. Dum lado a cidade europeia, de cimento, com bons estabelecimentos, cinema e o sempre presente clube ferroviário com a sua piscina. Do outro lado a cidade negra - os musseques construídos com capim e chapa de zinco.
A dicotomia era demasiado violenta. Não ia acabar bem.
CRÓNICAS DO CHÁ ( IX )

OS CANTINEIROS
O Sr. A. era o dono da cantina que frequentávamos. Ao lado da pequena cervejaria tinha uma loja, com balcão comprido, onde vendia de tudo - mercearias, tecidos, ferramentas, uma infinidade de coisas. Estava bem situada, esta cantina, junto ao Chá Madal e no caminho para outra plantação menor. Muitos outros cantineiros não tinham tal sorte e estavam estabelecidos em simples cruzamentos de picadas junto a aldeias semi-abandonadas.
O Sr. A. gostava de servir a tropa - éramos bons clientes e as fardas verdes e camufladas transmitiam segurança e tranquilidade.
Gostava de nos contar o seu trabalho e as suas aventuras. Tinha um camião e, apenas com um ajudante, percorria várias centenas de quilómetros, até à cidade, para se abastecer. As picadas, que nós também conhecíamos, abundavam em buracos e pó. Na época das chuvas surgiam rios em todo o lado que era forçoso atravessar. Já tinha ficado atolado durante dias até chegar socorro ou a água baixar. Também havia pontes. O tabuleiro era de troncos amarrados que, volta e meia se soltavam debaixo das rodas das viaturas.
Quando havia aldeias, o Sr. A. e o ajudante iam à procura de excedentes, comprando um saco de milho aqui, uns cachos de bananas acolá.
Tinham uma fama péssima, os cantineiros. Merecida em alguns casos. Noutros talvez não. Mas os aldeãos atribuíam-lhes todas as culpas pelas suas dificuldades - o que vendiam era sempre barato e o que compravam, sempre caro. Os problemas dos comerciantes não lhes diziam respeito.
Não parece que fosse negócio para fazer milionários. Entrava um(a) cliente e pedia um escudo de açúcar. Saía com a compra num pequeno cartuxo cónico de papel pardo.
Apostilha: Em 2009, o governo de Moçambique está tentar recuperar 3.000 cantinas, consideradas essenciais para melhorar a vida nos campos.
3.9.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( VIII )

A BARRAGEM
O Chá Madal tinha uma barragem com uma pequena hidro-eléctrica que servia a plantação e a fábrica.
Meia dúzia de soldados e o inevitável furriel montavam guarda permanente. Que serviria de pouco se houvesse acção hostil. Enfiados num buraco sem visibilidade, sem protecção, mal armados, seríamos um alvo fácil.
Vivia-se mal, numa pequena casa sem condições, bem junto ao sopé da enorme encosta, quase vertical, por onde desciam os canos da água.
Já tinha sido uma bonita cascata.
Também se comia mal é claro. Valia a esperteza dos camponeses-soldados que sempre descobriam alguma novidade.
Com uns tiros de espingarda nos pequenos pegos do regato "pescavam-se" uns peixitos miúdos para uma fritada.
Com paciência e pontaria "caçavam-se" uns pássaros para um arroz.
E não se fazia mais nada.
A não ser, sonhar com os churrascos de porco ou de galinha regados exclusivamente com whisky, oferta da casa ( Madal).
Guardava-se a água e sonhava-se com o whisky. Passava mais uma semana.
2.9.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( VII )

UM JAVALI NA CAMA
Tínhamos estado na cantina à saída do Chá Madal.
A beber cervejas Laurentina e a comer ovos cozidos. Muitas e muitos.
No regresso, o jipe teve um encontro, pouco amigável, com um javali.
Protegido pela forte couraça, o bicho ficou atordoado mas vivo.
Dava grandes saltos e corria pelo chá.
Foi uma pequena tourada nocturna.
Terminada com um tiro de pistola bem junto à cabeça.
Prenda para o nosso furriel vagomestre, que tratava dos abastecimentos e do rancho.
Por acaso, outro furriel respondia pelas comunicações, outro pelas viaturas, outro ainda pela saúde (parece que tínhamos direito a um médico mas eles ficaram todos juntos e confortáveis na sede do batalhão). Os outros furriéis, uns 8, asseguravam o trabalho operacional - patrulhas, destacamentos, escoltas e o mais que aparecesse. No Chá zambeziano e arredores, como anteriormente a norte, no planalto de Mueda.
Só havia um oficial do quadro e dois milicianos o que dava à justa para as relações públicas.
Os sargentos do quadro, com uma excepção, descobriram, logo à chegada, a vocação administrativa e ingressaram na secretaria.
Se calhar foi a guerra dos furriéis milicianos. Adiante.
Chegados a casa, pegámos cada um em sua pata do javali e, no silêncio da noite, cuidadosamente, introduzimos o bicho na cama do vagomestre.
O berro ressoa, até hoje, nas colinas do chá.
1.9.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( VI )

PAGAMENTO SAFURI
Pagamento Safuri era um mainato (empregado doméstico) muito sorridente e bem disposto.
Baixote, olho vivo, dentes irregulares muito brancos, sempre a rir.
Limpava a casa e tratava da roupa de dois ou três de nós. Ganhava mais do que os apanhadores de chá, trabalhava menos e era bem tratado.
Simples e humilde, alinhava nas piadas e brincadeiras mas mantinha uma boa reserva.
Sim tinha mulher e filhos, mas sem pormenores.
Sim morava perto, mas não se percebia bem onde.
Qualquer pergunta vagamente relacionada com a vida na plantação ou em Moçambique era descartada com um sorriso e um encolher de ombros.
Isto era regra e não excepção.
Todos os moçambicanos negros reservavam as suas opiniões e as suas palavras.
A região já tinha sofrido a sua dose de violência e a guerrilha tanto podia andar longe como podia estar já bem perto. O mato torna tudo invisível a poucos metros.
Pagamento Safuri ria à gargalhada com a graçola da escala social moçambicana e confirmava que era verdadeira.
" Primeiro Branco, depois preto, depois cão e depois monhé (de origem indiana) ".
Os monhés depois dos cães, era um piadão.
O preto depois do branco, não era piada.
31.8.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( V )
No Chá Madal sofremos a nossa última baixa. Estúpida como todas as mortes aos vinte anos. Ainda mais estúpida por pertencer àquela guerra estúpida.
E também por ter ficado relacionada com um momento bom, como era o futebol.
O cabo P. estava equipado a preceito, já não sei se "à Porto" ou "à Benfica".
Ficava-lhe bem. Tinha boa planta e era um bom defesa-central.
Ao contrário da maioria que jogava mal e equipava como calhava.
Lembrou-se que tinha que tomar uma injecção de rotina, foi ao posto médico antes de rumar ao futebol.
Foi a última coisa que fez. Talvez reacção alérgica.
Enterrámo-lo no dia seguinte, num cemitério qualquer, algures na Zambézia.
Hoje lembro-me dos filmes norte-americanos, com toda aquela pompa, o dobrar da bandeira, as continências, o toque de silêncio.
Nós, tropa sempre mal-amanhada, também amarrotados e sujos pelo pó da picada, milicianos (militares improvisados) em tudo, até no ritual da morte, lá nos perfilámos e demos uns tiros para o ar. Sem pompa, mas com respeito. E raiva daquilo tudo.
Foi uma morte entre 9.000. E mais 30.000 mutilados.
A responsabilidade histórica, por enquanto, está solteira.
Branquear a história, por omissão ou deturpação, é grave. E perigoso.
29.8.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( IV )

Golo de Mr. M.
O campo de futebol era uma pequena colina aplanada, rodeada de chá por todos os lados. Muito perto da casa de Mr. M.
Mr. M. era um exímio jogador. Apesar de andar pelos 50, era muito rápido, contornava-nos em grande velocidade e seguia, com a bola, na direcção da baliza.
Jogava com grande alegria. E vivia como jogava.
Tinha vindo do Ceilão e era um excelente técnico de chá. Graças a ele as folhas verdes secavam e maceravam com precisão.
Em casa, Mr M. tinha uma regra sagrada - as garrafas de whisky, uma vez abertas, não podiam transitar para o dia seguinte. Quando não tinha visitas era apenas uma por dia.
Mr M. era um inglês tranquilo e sorridente. No final dos anos sessenta, sabia perfeitamente que aquela vida e aquele trabalho tinham um prazo curto. Há muito que a sua pátria tinha descolonizado e, ali em Moçambique, só alguns portugueses, por ignorância, pensavam que seria diferente.
Mr. M. tinha grande vantagem sobre todos nós. Era de um país onde não havia censura nem polícia política. Nós não sabíamos nada. Tínhamos medo em vez de termos liberdade.
Por isso, Mr. M. vivia e saboreava cada dia.
Os lotes de chá saíam exactamente como deviam, as garrafas eram bebidas até ao fim e, no campo, aplicava-nos a sua finta fantástica.
Good Bye, Mr. M.
28.8.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( III )

As aldeias
A estadia no Chá Madal não era propriamente de férias.
Regularmente, aí uma vez por mês, tínhamos que sair em patrulha, ou acção psico-social, ou qualquer outro dos nomes que a tropa gosta de inventar.
Duas ou três viaturas grandes, carregadas de gente armada e de tudo o que fosse comestível e bebível e coubesse na verba, per capita, do regulamento.
Estávamos prontos para mais uma semana pouco agradável das nossas vidas.
Comer enlatados mal cozinhados e dormir no chão ou , (privilégio nada desprezível) numa maca, não era nenhuma festa.
Visitar aldeias arruinadas, isoladas no mato, com todas as carências do mundo, os poucos habitantes cheios de medo, ainda menos.
Ficariam, talvez, a poucas dezenas de quilómetros das estradas principais, mas pareciam centenas por aquelas picadas esburacadas e abandonadas.
Sempre de súbito, pois só se via mesmo ao pé, o mato abria-se e surgia uma clareira com 3 ou 4 palhotas. O guia dizia que era ali a aldeia tal.
Não se via ninguém. As mulheres e as galinhas, já sabíamos, desapareciam no mato logo que ouviam os motores. Os homens estavam muito longe, nas plantações ou na Frelimo.
Passados alguns minutos lá aparecia, sempre muito queixoso, um ancião.
Diálogo estranho ou talvez não. Com a sábia ajuda do guia-intérprete, nunca se percebia nada. Palavras soltas para lá e para cá, significado zero. Estava bem assim.
Só uma coisa o nosso anfitrião deixava muito claro - não era régulo de certeza absoluta - só estava por ali por ser velho. É que, em tempo não muito remoto, os régulos tinham pago pesadas facturas. Com a vida. E, muitas vezes, com os régulos, muitos mais.
O conflito clássico era a aldeia não cumprir a quota de trabalhadores para o "contrato" (trabalho forçado para as plantações). Represálias. Revolta violenta. Mais represálias, agora por unidades especiais ( policia, exército, pide).
Resultado - aldeias quase desertas, machambas abandonadas, fome e medo para muitos anos.
Agora a tropa manda aplicar acção psico-social. Pois.
Apostilha: Por vezes as galinhas apareciam - uma ou duas, já depenadas e bem longe da aldeia. Os espertos (sem sombra de ironia) camponeses/soldados tinham-nas descoberto no mato e explicavam sempre um negócio muito confuso, por troca directa, com alguém que também só eles encontravam. É verdade que o entendimento era muito mais fácil porque não tinham intérprete. De qualquer maneira, os animais só apareciam quando já não era possível averiguar a lisura do negócio, caso a consciência do comandante fosse mais forte do que a vontade de comer uma coxa ou um peito.
27.8.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( II )

OS APANHADORES DE CHÁ
Em grupos organizados, caminham através dos estreitos carreiros entres as plantas, com as duas mãos colhem os rebentos e atiram-nos para dentro dos grandes cestos que transportam às costas - são os apanhadores de chá.
Não falam, nem riem. Mecanicamente executam o trabalho e ninguém sabe o que pensam.
A meio do dia chega a camioneta. Capatazes e ajudantes cruzam três paus ao alto, penduram a balança, pesam os cestos e registam o resultado. Os apanhadores não olham. Não vale a pena. Sabem que não podem discutir o peso, nem o pagamento. Nem qualquer outra coisa. Sentam-se no chão e comem a ração que lhes é distribuída - um prato de mandioca e algum peixe seco. Toda a gente sabe que preto não gosta de galinha, como as senhoras brancas explicam.
Vieram de aldeias distantes. Deixaram as famílias e as machambas (hortas familiares). Foram recrutados à força pelos administradores portugueses, com a ajuda dos sipaios moçambicanos devidamente armados. Era a lei.
Tudo começou com a atribuição de terras a colonos brancos por longos períodos - "os prazos" que às vezes se mediam em gerações.
Pelo seu lado, os povos indígenas tinham que pagar impostos - "de palhota" e individual. Dinheiro não tinham, géneros só para comer, inventou-se o pagamento em trabalho - sobretudo arranjavam caminhos o que não era mau e beneficiava a comunidade.
Depois, os colonos ou "prazeiros" começaram a entrar em dificuldades e venderam os "prazos". Assim chegaram as empresas interessadas nos produtos tropicais.
Eram constituídas por capitalistas portugueses mas sobretudo estrangeiros, estes já ligados às grandes empresas dos seus países.
De início os trabalhadores eram recrutados para trabalhar para o estado e, em seguida, desviados para as plantações (além do chá também coqueiros, sisal, algodão e cana sacarina)
Depois, a lei foi "aperfeiçoada" - nestas e noutras matérias distinguiram-se os governadores Augusto de Castilho e António Enes que constam dos livros de história - e os indígenas ficaram obrigados a trabalhar para as empresas.
Chamavam-se, ironicamente, "os contratos" mas não estabeleciam nenhum direito para os trabalhadores.
As empresas já tinham a terra quase de graça. A mão-de-obra, agora, também.
25.8.09
CRÓNICAS DO CHÁ ( I )

UMA PISCINA NO ALTO DA MONTANHA
Estava-se bem no Chá Madal.
O clima era agradável e a velha casa colonial que nos destinaram tinha um alpendre, à sombra de uma grande mangueira, e com uma bela vista sobre a plantação.
Estendendo-se até perder de vista, as colinas estavam totalmente cobertas pelos arbustos verdes do chá. Parecia um grande mar tranquilo.
Depois de um ano com alguma guerra e muitas privações lá pelo norte, a plantação de chá, nos montes da Zambézia, era um refrigério.
Conversava-se e desconversava-se muito naquela varanda, muitas bocas a propósito ou a despropósito mas a calma era sólida e saborosa como as mangas que iam caindo lá do alto.
No íntimo, recordavam-se alguns maus bocados do ano anterior, agora com uma sensação de agradável alivio.
Mesmo após vários meses, ainda se sentia a descompressão. As tensões que havíamos acumulado, os medos que tínhamos escondido de nós próprios iam-se desvanecendo. Sabiamente, a nossa memória libertava-nos, pouco a pouco, dos nossos fantasmas.
Estava-se bem no Chá Madal.
E quando fazia mais calor, subia-se um pouco a montanha e encontrava-se... a piscina.
Lá estava ela, no cimo do Monte Mabu.
Não era grande, talvez de tamanho médio, mas sempre limpa , fresca e rodeada de relva.
Pertencia a uma grande casa envidraçada com mobília inglesa.
Era a residência do administrador e impressionava porque lá bem no alto, já perto do cume da montanha, isolada de tudo, não se esperava encontrar uma vivenda daquelas, mais própria de um bairro rico de qualquer cidade.
Mas ali, no alto da montanha, a casa e a piscina eram um símbolo de poder.
Do poder dos donos daquela e doutras plantações, a "Societé du Madal" - assim mesmo em francês e tudo porque a sede era no Mónaco, e além do príncipe respectivo, tinha accionistas de vários países europeus.
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